Nos últimos anos, a Coreia do Sul viveu uma mudança histórica em relação ao consumo de carne de cachorro. Em janeiro de 2024, a Assembleia Nacional aprovou por unanimidade uma lei que proíbe a criação, o abate, a comercialização e o consumo de carne de cão a partir de 2027. Essa decisão encerra uma prática secular do país e colocou em evidência o destino de cerca de meio milhão de cães ainda criados para esse fim. Em meio às comemorações de ativistas de proteção animal e às apreensões de produtores, surgem dúvidas sobre o futuro desses animais. O que acontecerá com os cães hoje confinados em fazendas? Como será a transição cultural em um país onde essa tradição está fincada na história?

Histórico do consumo de carne de cachorro na Coreia do Sul
O consumo de carne de cachorro, conhecido localmente como “kaegogi”, faz parte da cultura coreana há séculos. Antigamente, acreditava-se que esse alimento fortalecia o organismo, especialmente durante o verão, por trazer energia e resistência. Por isso, dog-soup (bosintang) e outros pratos caninos eram populares em épocas de calor.
Estima-se que na última década cerca de dois milhões de cães eram mortos por ano para consumo, gerando em torno de cem mil toneladas de carne canina. No entanto, essa prática vem caindo rapidamente. Pesquisas recentes apontam que apenas 8% dos sul-coreanos consumiram carne de cachorro nos últimos 12 meses, contra 27% em 2015.
Entre as gerações mais jovens, a porcentagem é ainda menor, pois a maioria enxerga os cães como animais de estimação, não comida. Esse desgaste também se explica pela atenção crescente às condições de criação e abate: muitas imagens mostram cães confinados em espaços precários e métodos cruéis de abate, como eletrocussão ou enforcamento. Ao mesmo tempo, à medida que a classe média cresceu e o número de lares com pets aumentou, os sul-coreanos passaram a rejeitar o costume antigo. Hoje, 25% das famílias sul-coreanas têm cachorro de estimação (ante 16% em 2010), o que reflete a nova visão de que cães são companheiros, não fontes de alimento.
Nova legislação: fim gradativo da indústria de carne canina
Com o novo projeto de lei sancionado, todas as etapas da indústria de carne de cachorro passam a ser ilegais. A lei estabelece um período de transição de três anos, entrando em vigor plena até fevereiro de 2027. Depois dessa data, ficará proibido criar, abater ou vender cães para consumo humano, sob pena de até três anos de prisão ou multa de até 30 milhões de won (cerca de R$ 110 mil).
Importante notar que a legislação pune especificamente a criação e o abate, o texto não prevê sanções para quem simplesmente comer carne de cão, embora desencoraje esse hábito. Trata-se, segundo os legisladores, de “aplicar valores dos direitos dos animais” e promover uma convivência harmoniosa entre humanos e bichos. A aprovação do projeto, em janeiro de 2024, foi considerada histórica: até então, a prática não era nem explicitamente legalizada nem totalmente proibida no país. A proposta contou com apoio raro de diferentes partidos e foi emendada rapidamente, superando resistências antigas da indústria e retomando debates que já aconteciam há anos.
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O que motivou a mudança na lei
A mudança legal reflete uma ampla transformação de valores na sociedade sul-coreana. Pesquisa do governo mostra que apenas 8% dos entrevistados consumiram carne de cachorro em 2024, contra 27% em 2015, e apenas 3,3% afirmaram que continuariam depois de 2027. De fato, uma pesquisa da ONG Humane Society International (HSI) indicou que cerca de 86% da população não quer mais consumir cães.
Esse desinteresse crescente combinou-se a uma forte mobilização de grupos de proteção animal e de defensores do bem-estar. Entre os motivadores políticos, destacam-se a atuação do presidente Yoon Suk Yeol e de sua esposa, Kim Keon-hee – ambos públicos defensores de animais. Yoon, conhecido por adotar cães e gatos de rua, incentivou a discussão sobre o tema, e a primeira-dama chegou a apoiar abertamente o banimento do consumo canino.
O resultado foi um consenso inédito no parlamento e apoio popular majoritário. Conforme declarou Chae Jung-ah, diretora de uma ONG de defesa animal, “alcançamos o ponto de inflexão em que a maioria dos cidadãos coreanos rejeita comer cachorros”. Em suma, a lei foi motivada por mudanças culturais (os cães passaram a ser vistos como membros da família), por pressão internacional pelo bem-estar animal e por ampla aprovação pública, especialmente entre os mais jovens.
Destino dos cães criados em fazendas
Diante do fim anunciado da indústria canina, uma das maiores preocupações é o que fazer com os cães criados em fazendas para abate. Estima-se que, em 2022, havia cerca de 1.100 criadouros com 570 mil cães destinados à mesa, abastecendo aproximadamente 1.600 restaurantes. Com o encerramento gradual dessas fazendas, muitos produtores já relatam dificuldades para doar ou vender seus animais, que geralmente são cães de grande porte pouco desejados como pets.
Abrigos públicos e ONGs estão sobrecarregados: organizar espaço, alimentação e cuidados para centenas de cães ex-criados para comer é um desafio logístico e financeiro enorme. Há risco real de que alguns desses animais sejam abandonados nas ruas ou submetidos à eutanásia, um paradoxo cruel já que a lei busca salvar vidas.
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O governo minimiza esse temor: um porta-voz do Ministério da Agricultura afirmou que a eutanásia não faz parte dos planos oficiais. Segundo as autoridades, os criadores que quiserem encerrar as atividades poderão receber subsídios (o governo prometeu cerca de 6 bilhões de won por ano para ampliar abrigos públicos) e devem entregar os cães às prefeituras locais. Nesses casos, os animais ficariam sob responsabilidade dos municípios, que devem cuidar de sua alimentação e atendimento veterinário. Em síntese, o plano oficial prevê transferir os cães dos criadouros para abrigos públicos ou projetos de adoção, com incentivo financeiro aos fazendeiros que encerram a criação mais cedo. Na prática, porém, a capacidade de acolhimento é limitada, e as ONGs de resgate alertam que será preciso acelerar adoções nacionais e internacionais e reforçar os recursos dos abrigos para evitar uma crise animal.
Impacto cultural e reação da sociedade
A proibição da carne canina provoca reações diversas na sociedade sul-coreana. Para a maioria urbana e jovem, ela confirma uma tendência de longa data: a percepção dos cães mudou radicalmente. Um estudo mostrou que 94% dos coreanos declararam não ter consumido carne de cachorro no último ano, e 93% disseram que não o fariam no futuro. Para essas parcelas da população, o banimento foi bem-vindo e até tardio.
Ativistas e organizações de bem-estar animal comemoraram a medida como um marco simbólico e cultural, colocando a Coreia do Sul em linha com padrões internacionais de proteção animal. Em contraste, setores mais conservadores e alguns consumidores tradicionais reagiram com decepção. Assim que o projeto veio à tona, líderes de associações de criadores e restaurantes de carne de cachorro organizaram protestos.
Houve ameaças dramáticas: por exemplo, cerca de 200 fazendeiros reivindicando o direito ao seu ofício anunciaram publicamente que poderiam soltar “dois milhões de cães” em locais públicos ou nas casas de legisladores, em forma de protesto contra a proibição. Do ponto de vista cultural, a lei rompe com um costume centenário da península coreana. Muitos críticos argumentam que a decisão fere uma liberdade pessoal de consumo e põe em risco pequenos produtores.
De qualquer forma, pesquisas indicam que essa oposição está diminuindo: embora um em cada três sul-coreanos ainda se declare contra a proibição completa, a maior parte da população já não tem o hábito de comer carne de cachorro e apoia medidas de bem-estar animal.