Você já viu aquele cachorro que parece não ter dono, mas está sempre limpo e bem alimentado no seu bairro? Ou talvez o gato que frequenta a área comum do seu condomínio e recebe carinho de vários moradores? Esses são exemplos de animais comunitários, uma categoria específica de animais que, embora não tenham um tutor definido, são cuidados coletivamente e possuem direitos garantidos por lei.
Entender o que diz a legislação a respeito desse tema é fundamental tanto para proteger esses animais quanto para orientar síndicos, moradores e cuidadores.

O que são animais comunitários e como identificá-los
Animais comunitários são aqueles em situação de rua que desenvolveram vínculos de afeto, cuidado e manutenção com os moradores da localidade onde vivem. Geralmente são cães e gatos, por serem as espécies mais numerosas em ambientes urbanos.
O decreto do Rio de Janeiro nº 46237/2019 define claramente: “entende-se como animais comunitários aqueles que estabelecem, com membros da população onde vivem, vínculos de afeto, dependência e manutenção”. Essa definição aparece de forma semelhante em outras legislações municipais e estaduais pelo país.
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Diferença entre animais comunitários e abandonados
É importante distinguir animais comunitários daqueles simplesmente abandonados. Enquanto os abandonados não recebem qualquer tipo de cuidado e estão completamente desamparados, os animais comunitários têm cuidadores que garantem sua alimentação, hidratação e cuidados básicos, mesmo sem retirá-los das ruas ou áreas comuns.
Principais características de um animal comunitário:
- Permanece na mesma região ou território definido
- Recebe alimentação regular de moradores ou frequentadores da área
- Apresenta boas condições físicas e de saúde
- É reconhecido e aceito por parte da comunidade local
- Muitos são castrados e identificados por coleiras ou microchips
Direitos assegurados dos animais comunitários
Os animais comunitários possuem os mesmos direitos de qualquer animal doméstico e devem ter seu bem-estar e dignidade assegurados. A base dessa proteção vem da própria Constituição Federal e de leis nacionais sobre proteção animal.
Legislação federal e constitucional
A proteção aos animais comunitários tem base constitucional no artigo 225, §1º, inciso VII, que veda práticas que submetam os animais à crueldade. Além disso, a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98) tipifica como crime, em seu artigo 32, os maus-tratos contra animais.
Privar esses animais de alimentação, água ou abrigo configura maus-tratos e, portanto, crime ambiental. A pena para esse tipo de infração foi recentemente agravada pela Lei nº 14.064/2020, podendo chegar a cinco anos de reclusão quando se tratar de cães ou gatos.

Legislações estaduais e municipais
Vários estados e municípios possuem legislação específica sobre animais comunitários. Por exemplo:
Rio de Janeiro: A Lei Estadual nº 6.464/2013 reconhece o conceito de animal comunitário e a Lei Municipal nº 6435/2018 estabelece que “o animal comunitário deverá ser mantido no local onde se encontra, a não ser que este ofereça quaisquer riscos a sua integridade física”.
Niterói/RJ: A Lei nº 3153/2015 assegura expressamente “o direito ao fornecimento de alimentação e/ou água aos animais que estão em situação de rua, por qualquer pessoa física ou colaborador de pessoa jurídica, em espaços públicos, repartições públicas ou similares e áreas comuns de condomínios”.
Mesmo em locais sem legislação específica, a jurisprudência tem reconhecido os direitos dos animais comunitários com base nas leis gerais de proteção animal.
Animais comunitários em condomínios: o que a lei permite
Um dos pontos mais polêmicos sobre animais comunitários refere-se à sua presença em áreas comuns de condomínios. Muitos síndicos tentam proibir a presença desses animais ou impedir que moradores os alimentem, mas essas práticas são consideradas ilegais.
Jurisprudência sobre animais comunitários
A jurisprudência nacional tem se manifestado consistentemente a favor dos animais comunitários. Os tribunais têm entendido que decisões condominiais que proíbam a alimentação ou permanência desses animais em áreas comuns são nulas por ilegalidade.
Um caso emblemático foi julgado pela 2ª Vara de Feitos de Relações de Consumo Cíveis e Comerciais de Feira de Santana, que determinou a permanência de gatos comunitários em um condomínio e proibiu que a administração multasse a moradora que os alimentava.
Na decisão, o juiz afirmou: “A conduta da autora não é irregular e, aliás, é possível que cães e gatos ‘de rua’, cuidados com frequência por determinada comunidade ou pessoa, sejam caracterizados como ‘animais comunitários’, ou seja, animais que não possuem um tutor ou lar específicos, mas que permanecem sob os cuidados de uma ou mais pessoas.”
Limites da regulamentação condominial
Embora não possa proibir a presença ou alimentação de animais comunitários, o condomínio pode estabelecer regras razoáveis para organizar essa convivência, desde que não violem os direitos básicos desses animais.
Medidas permitidas em regulamentos condominiais:
- Definir locais específicos para alimentação
- Criar cadastro dos animais comunitários presentes na área
- Estabelecer lista de cuidadores responsáveis
- Determinar horários para alimentação
- Solicitar comprovação de vacinação e castração
O importante é que essas regras visem organizar a convivência, não impedir os cuidados necessários aos animais.
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Responsabilidades dos cuidadores de animais comunitários
Embora não sejam considerados tutores no sentido tradicional, os cuidadores de animais comunitários assumem responsabilidades importantes para garantir o bem-estar desses animais.
Cuidados básicos necessários
Os principais cuidados que devem ser proporcionados aos animais comunitários incluem:
Alimentação adequada: Oferecer alimento de qualidade em quantidades apropriadas, preferencialmente em horários regulares e em locais específicos.
Água fresca: Garantir que os animais tenham acesso a água limpa e fresca, trocando-a regularmente.
Abrigo: Providenciar algum tipo de abrigo contra chuva, frio e calor excessivo, especialmente em regiões com clima extremo.
Atenção veterinária: Buscar atendimento médico veterinário quando necessário, seja em clínicas particulares ou serviços públicos.
Castração: Promover a castração dos animais para evitar a proliferação descontrolada e reduzir comportamentos territoriais.
Muitos municípios oferecem serviços gratuitos de castração e vacinação para animais comunitários, e os cuidadores podem solicitar essas intervenções junto às secretarias de saúde ou meio ambiente locais.

Como administrar a presença de animais comunitários no condomínio
Para evitar conflitos e garantir uma convivência harmoniosa, é fundamental que condomínios estabeleçam procedimentos claros para lidar com animais comunitários.
Elaboração de regras e acordos
A advogada animalista Giovana Poker sugere que condomínios criem regras específicas através de votação em assembleia ou mediação com os cuidadores. Entre as medidas recomendadas estão:
1. Elaboração de ficha cadastral dos animais e seus respectivos cuidadores
2. Determinação de locais fixos para alimentação e abrigo
3. Requerimento junto à prefeitura para castração e vacinação gratuita
4. Definição de responsabilidades entre os cuidadores
5. Criação de um fundo coletivo para despesas veterinárias de emergência
Mediação de conflitos
Quando surgem conflitos entre moradores favoráveis e contrários aos animais comunitários, a mediação pode ser um caminho eficaz. Recomenda-se:
– Promover diálogos abertos sobre o tema em reuniões específicas
– Consultar especialistas em direito animal para esclarecer dúvidas legais
– Buscar acordos extrajudiciais que conciliem os interesses de todos
– Documentar por escrito os acordos firmados
A advogada Poker recomenda a realização de acordos amigáveis para evitar que conflitos se agravem e acabem no judiciário, o que prejudica a convivência e impõe custos processuais para todos os envolvidos.
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Consequências jurídicas para quem viola os direitos dos animais comunitários
Atentar contra a vida ou a integridade dos animais comunitários ou impedir que recebam os devidos cuidados pode gerar sérias consequências legais.
Responsabilização civil e criminal
Síndicos e administradores de condomínios que impedem a permanência ou alimentação de animais comunitários podem enfrentar:
Na esfera criminal: Processo por crime de maus-tratos (art. 32 da Lei 9.605/98), com pena que pode chegar a até 5 anos de reclusão quando se trata de cães e gatos.
Na esfera civil: Ações de obrigação de fazer e não fazer, com imposição de multas e indenizações por danos morais e materiais.
Como alertado pela advogada Giovana Poker, síndicos devem ser cautelosos e “sempre buscar assessoria jurídica especializada sobre o tema, pois a imposição de regras e/ou sanções abusivas são ilegais e podem acarretar na responsabilidade civil e criminal do condomínio e, dependendo do caso, também do síndico como pessoa física”.
Vale ressaltar que a responsabilidade pode ser pessoal, ou seja, o síndico pode responder com seu patrimônio próprio por atos que violem os direitos dos animais comunitários, mesmo quando age representando o condomínio.
Os tribunais têm reconhecido de forma consistente a prevalência dos direitos dos animais comunitários sobre eventuais restrições impostas por condomínios, invalidando regras internas que contrariem a legislação protetiva.